Peregrinação

A Peregrinação de Fernão Mendes Pinto é o maior clássico ignorado da literatura portuguesa. Não conheço outro livro assim, que escrito por um homem de 60 anos, pareça ser de um homem de 20, cheio de paixão e voragem pelo mundo e que usa as palavras como bombas para nos esmagar sob a força desse mundo.
E que mundo! Feito de viagens, descobertas, naufrágios, riquezas, miséria, canibalismo, escravatura, luxo e cidades sem fim descritas até ao estado dos dentes dos seus habitantes. Que importa se aquilo que Mendes Pinto conta é verdadeiro ou não, se o seu autor claramente acredita em tudo o que escreveu com a fé de um mártir, e não olha a meios para nos converter também a nós? Lembro-me da leitura da Peregrinação como uma grande viagem à qual não podemos escapar, quer ela nos assuste ou aborreça, confunda ou deslumbre. Duvido que haja no mundo romance pícaro que se lhe possa equivaler no esplendor da linguagem e no fascínio da criatividade.
Usar texto retirado diretamente do livro e somar-lhe a soberba música de Fausto era já meio caminho andado para João Botelho me conquistar. Mas a sua solução cinematográfica de misturar teatro histórico com musical da Disney, servido por uma imaculada composição cria um filme que, sem se equivaler ao atrevimento e exuberância do original (o que poderia?), veio pelo menos acrescentar camadas de sensualidade e sentido a um livro que subverte tanto lirismos sobre o império português como teorias de pós-colonialismo.