Borges e Smartphones
«... desenhei um quadro mágico na mão direita de Iacub e pedi-lhe que lhe desse uma forma côncava e verti um círculo de tinta no meio. Perguntei-lhe se distinguia claramente o seu reflexo no círculo e respondeu que sim. Acendi o benjoim e o coentro e queimei as invocações no braseiro. Pedi-lhe que dissesse o nome da figura que desejava olhar. (...)
Assim ele me foi exigindo e lhe fui mostrando todas as aparências do mundo. Esse homem morto, que detesto, teve na sua mão quanto os homens mortos já viram e vêem os que estão vivos: as cidades, climas e reinos em que se divide a terra, os tesouros ocultos no centro, as naves que atravessam o mar, os instrumentos da guerra, da música, e da cirurgia, as graciosas mulheres, as estrelas fixas e os planetas, as cores que empregam os infiéis para pintar os seus quadros detestáveis, os minerais e as plantas com os segredos e virtudes que encerram, os anjos de prata cujo alimento é o elogio e a justificação do Senhor, a distribuição dos prémios nas escolas, as estátuas de pássaros e de reis que há no coração das pirâmides, a sombra projectada pelo touro, os desertos de Deus, o Misericordioso. Viu coisas impossíveis de descrever, como as ruas iluminadas a gás e como a baleia que morre quando escuta o grito do homem. Uma vez ordenou-me que lhe mostrasse a cidade que se chama Europa. Mostrei-lhe a principal das suas ruas e creio que foi nesse caudaloso rio de homens, todos ataviados de negro e muitos com óculos, que viu pela primeira vez o Mascarado. (...)
Então ordenei que (...) lhe arrancassem a máscara (...) Os assustados olhos de Iacub puderam ver por fim essa cara - que era a sua própria. Cobriu-se de medo e loucura. Agarrei-lhe na mão direita trémula com a minha que estava firma e ordenei-lhe que continuasse a olhar a cerimónia da sua morte. Estava possuído pelo espelho; nem sequer tratou de erguer os olhos e de voltar a tinta.» (Jorge Luís Borges, O Espelho de Tinta)
Assim ele me foi exigindo e lhe fui mostrando todas as aparências do mundo. Esse homem morto, que detesto, teve na sua mão quanto os homens mortos já viram e vêem os que estão vivos: as cidades, climas e reinos em que se divide a terra, os tesouros ocultos no centro, as naves que atravessam o mar, os instrumentos da guerra, da música, e da cirurgia, as graciosas mulheres, as estrelas fixas e os planetas, as cores que empregam os infiéis para pintar os seus quadros detestáveis, os minerais e as plantas com os segredos e virtudes que encerram, os anjos de prata cujo alimento é o elogio e a justificação do Senhor, a distribuição dos prémios nas escolas, as estátuas de pássaros e de reis que há no coração das pirâmides, a sombra projectada pelo touro, os desertos de Deus, o Misericordioso. Viu coisas impossíveis de descrever, como as ruas iluminadas a gás e como a baleia que morre quando escuta o grito do homem. Uma vez ordenou-me que lhe mostrasse a cidade que se chama Europa. Mostrei-lhe a principal das suas ruas e creio que foi nesse caudaloso rio de homens, todos ataviados de negro e muitos com óculos, que viu pela primeira vez o Mascarado. (...)
Então ordenei que (...) lhe arrancassem a máscara (...) Os assustados olhos de Iacub puderam ver por fim essa cara - que era a sua própria. Cobriu-se de medo e loucura. Agarrei-lhe na mão direita trémula com a minha que estava firma e ordenei-lhe que continuasse a olhar a cerimónia da sua morte. Estava possuído pelo espelho; nem sequer tratou de erguer os olhos e de voltar a tinta.» (Jorge Luís Borges, O Espelho de Tinta)