O nosso Salazar




O grande problema do passado é que existe hoje. Se o presente é controverso e o futuro incerto, o passado é um choque a cada instante, à medida que lutamos por fazer sentido dele.
Fazer sentido do passado é saber que ele faz parte de nós, por mais ridículo ou piroso que ele nos pareça - aliás, tal como os nossos pais, quanto mais piroso for o passado, mais ele faz parte das nossa vida.
Há muitos anos um estudante alemão de cinema fez uma curta-metragem em que velhos nazis em cadeiras de rodas brigavam violentamente entre si. Era uma comédia, claro, e chamava-se “A Luta Deles”. Enquanto piada, o filme tentava rejeitar o legado nazi enquanto passado, algo que só interessava aos velhos, e do qual os jovens se podiam descomprometer.
É uma posição confortável, de facto, mas rejeitar algo enquanto ridículo e inconsequente é quase sempre não reconhecer as consequências profundas que esse passado nos lega. Por isso é um espectáculo corajoso e honesto o Eu, Salazar, de Ricardo Vaz Trindade. Uma obra que olha para Salazar como um passado na prateleira, mas como algo que está ainda no nosso corpo, que nos interpela, e acena em pequenos gestos nossos. Nele vemos os intérpretes confrontarem-se com a forma como Salazar e o Estado Novo determinou a sua vida, e obrigam o público a confrontar a sua própria herança salazarista. Sendo uma peça de teatro, toma as ferramentas do teatro para evocar a mitologia salazarista - da roupa branca à mocidade portuguesa. Mas evoca-a enquanto desafio, enquanto combate de boxe, enquanto vontade de exorcizar essa mitologia, para que ela possa também abandonar os nossos corpos.
Para que, ao nos reconhecermos enquanto Salazar, o possamos enterrar de vez.