As cortinas do teatro



A Casa de Bernarda Alba e Estava em Casa e Esperava que a Chuva Viesse têm muitas semelhanças: ambos escritos por autores homossexuais desaparecidos muito novos, contam a história de um grupo de mulheres da mesma família obcecadas por um homem. Mas Federico Garcia Lorca morreu às mãos da repressão franquista, e Jean-Luc Lagarce morreu de SIDA e isso faz toda a diferença. As mulheres de Lorca anseiam por Pepe Romano, o homem que para elas representa o sexo, a liberdade e a vida, ao passo que as mulheres de Lagarce velam um rapaz novo, que jaz num quarto, possivelmente morto, tendo de lidar com essa morte e esse vazio incompreensível que se anuncia nas suas vidas.
A encenação que a Público Reservado faz do segundo destes textos é notável. Lidando com um texto de um enorme dramatismo, a encenadora Renata Portas assume uma rejeição radical de qualquer ideia de naturalismo ou de melodrama. A rejeição é, afinal, a única chave do ato criativo.
As personagens femininas deste espectáculo são quase estáticas, peças de um jogo cénico que parece regido implacavelmente pela cenografia de um gigantesco vidro partido, como se fosse um mapa da desolação, e as suas rachas fossem as linhas de fuga de um quadro vivo. E os rostos - esse farol da emoção humana - estão quase sempre escondidos, pela sombra, pelo virar de costas, pelos filtros, pelos panejamentos, pelo abrigo dos braços. Nesta escolha de rejeitar a emoção fácil, jaz também uma das escolhas artísticas mais espantosas deste espectáculo: o jogo que faz com as convenções teatrais, em que Renata Portas, não nega as convenções do teatro clássico, como hoje é moda, mas recupera-as e transforma-as.
Ao esconder os rostos e controlar os corpos,  a encenação vinca a voz, que foi o centro da experiência teatral na maior parte dos últimos 2500 anos, mas também a transforma: as atrizes gemem, ganem, guincham, riem, uivam, ululam, como se fossem as últimas carpideiras, mas também portadoras de vestígios de uma emoção pré-verbal que permanece indecifrável.
O espaço teatral, que desde a invenção do palco à italiana era esquematizado numa grelha, continua a ser um campo plástico, mas nesta peça, pela posição dos corpos, pelo uso de baloiços e escadas, torna-se também um campo vertical, uma folha dobrada que envolve o público.
E, por fim, com a recuperação e multiplicação das cortinas - que quase se extinguiram no teatro contemporâneo - a peça relembra-nos que estas eram as elipses do teatro: uma arte que pela sua presentificação sempre teve problemas em lidar com a passagem do tempo. Através dos panejamentos pretos e transparentes, a Renata Portas cria múltiplas dimensões do espaço, e do tempo, gerando movimento e drama sem cair no ato teatral nem na convenção dramática, e sem esquecer que a peça de Lagarce é acima de tudo uma tragédia de estar preso à vida enquanto se contempla a morte.