O bolo do futuro




O mundo era um palco para William Shakespeare, mas em A Tragédia de Júlio César, de William Shakespeare, tal como foi encenada por Luís Araújo, todo o teatro se torna ele próprio palco da luta política.

O espectáculo começa com uma personagem - a mulher de limpeza/adivinho interpretada por Maria Inês Peixoto - que parte do palco para os bastidores, e para o resto do edifício, que descobrimos através de um ecrã, revelando não só os seus meandros, mas os meandros do próprio poder de Roma tal como foram contados pelo bardo inglês. Os atores circulam entre três planos: o plano do palco, o plano do fundo do palco, escondido por uma cortina fosca, e um ecrã, numa experiência de cinema expandido que revela múltiplas dimensões do poder humano, do mais íntimo ao mais público, que se torna transitório e fluido. É um exercício de transposição de planos muito difícil, mas conseguido pelo virtuosismo da encenação inteligente e de cunho pessoal forte, o brilhante trabalho de atores, que conseguem manter a consistência entre o palco e o ecrã, e especialmente o trabalho excecional de Maria Inês Peixoto que, entre a fragilidade e a presença, entre a ação e o testemunho, serve de fio que une todos estes mundos.
O feito confirma-se nas palavras de uma espectadora que, no intervalo, se queixava insistentemente da "falta de presença do palco", sem se aperceber que o palco está nestas múltiplas dimensões da presença e ausência - ou seja, na natureza diáfana do poder.
A partir do meio, todavia, a encenação ganha um traço mais grosso, e instala-se uma visão cínica do poder: a guerra como brincadeira cruel dos senhores do mundo, o triunfo político como partilha dos despojos, o trinchar e devorar comum do bolo conquistado. Shakespeare, sendo o grande dramaturgo ocidental do poder político, nunca teve uma visão cínica sobre este, vendo-o antes, ao modo medieval, como a luta crucial pelo futuro do reino. E talvez essa visão se concretize também na cena final do espectáculo em que o adivinho - o futuro, portanto - partilha também ele do bolo da luta, enquanto olha as letras da música Circus Man, de Daniel Johnston, lembrando-nos que o futuro, ou seja, nós, é o grande herdeiro dos despojos da luta de poder de Roma, tal como aqueles que vierem depois herdarão os despojos das lutas de poder dos nossos dias.