Histórias de copos e moscas



O Rui Manuel Amaral é dos escritores mais generosos que conheço. Generoso com os outros e também para com a própria literatura, em que vive e respira como poucos.
Cadernos de Bernfried Järvi é o seu primeiro alegado romance. Seria melhor chamar-lhe prosa longa, eventualmente narrativa, mas mais apropriado ainda dizê-lo um delírio literário. Dos prodigiosos.
É que o Rui é dos grandes sabotadores da narrativa do nosso país. Há quem conte histórias, há quem lavre poemas e há outros - uns poucos - que se dedicam a dinamitar as histórias em que nos escondemos. E por isso esta sua obra está cheia de curvas inesperadas, travagens bruscas, lombas existenciais que desconcertam o leitor e o desarmam para todas as maldades que o livro lhe tenta infligir. E não são poucas, nem inocentes.
Nesta maravilhosa obra navegamos pelas ondulações de um café banal que podiam ser dois, que podia ser no Porto ou em Aachen; atravessamos uma  história de amor que parece não interessar aos próprios amantes. Em suma: sentimos na pele o unto da banalidade e espantamo-nos como ele pode ser imprevisto, fascinante, espantoso até.
A ficção normal promete-nos o engodo do escapismo, de horas despidas de realidade e vida. Pelo contrário, o Rui liberta-nos da tirania da ficção, dos seus logros e seduções, e mostra-nos que não há sítio mais bizarro do que a vida inundada da literatura que o Rui devora.
Bem-dito seja.