Escrever bem


António Guerreiro é um dos mais interessantes divulgadores de bibliografia dos jornais portugueses, nomeadamente da bibliografia vinda dos meios intelectuais franceses e italianos.
Numa crónica recente sua, a propósito da morte de Vasco Pulido Valente, desancava as noções de "escrever bem" e de "estilo". Sem clareza evidente, o seu principal argumento parecia esboçar a negação de que existisse um "escrever bem", ou de que Vasco Pulido Valente fosse um escritor particularmente exímio.
Reconheça-se que Pulido Valente foi um escriba de choque da direita portuguesa, cujos textos se fundavam invariavelmente no ceticismo sobre o humano, o institucional e o português enquanto vias para o melhoramento da sociedade. Os seus textos eram marcados por frases curtas, substantivos lapidares e verbos inesperados, modalizados por advérbios destinados a conferirem-lhe um tom irónico. O que quase sempre introduzia alguma novidade nesta fórmula de escrita eram os estudos de VPV sobre a história de Portugal, que acabavam por legitimar o que de outro modo poderia descambar no clichê e no vazio, tal como acontece à maioria dos émulos de VPV, e aconteceu também àquele na última fase da sua carreira.
Todavia, António Guerreiro tenta generalizar este caso, atacando a ideia de que possa existir uma qualidade de escrita independentemente do seu conteúdo, parecendo ancorar-se nos argumentos de que a escrita seria um bem não objetivável na sua avaliação, que o estilo seria acima de tudo um artifício da fraseologia e desconsiderando a clareza de expressão como sinal de simplicidade de pensamento ou mesmo complacência intelectual.
É curioso ver como o próprio António Guerreiro certamente desconsideraria estes mesmos argumentos se eles fossem aplicados à literatura ou arte contemporânea, tendo em conta que estas também não podem ser alvo de avaliação objetiva, e muitas vezes a sua aparente clareza esconde o intenso labor intelectual que lhes é subjacente, ou um questionamento profundo das estruturas inerentes à sua arte, do mesmo modo que o trabalho sobre a frase é também um trabalho sobre a trave-mestra da própria escrita.
Mais curioso ainda é reparar na desconsideração da clareza de expressão como mero artifício, pois supor-se-ia que só quem acredita que o pensamento não é uma forma de linguagem e que a linguagem é o mais espantoso dos artifícios humanos - ideias reforçadas ciclicamente por António Guerreiro e seus autores fundamentais -  poderia concluir que é possível pensar claramente sem que esse pensamento se traduza numa escrita clara e elegante.
Aliás, a crónica em causa de António Guerreiro parece enfermar justamente desse problema.

Na imagem: retrato do padre Manuel Bernardes, tido como cume da prosa clássica portuguesa, mas passível de ser acusado de aldrabão de estilo literário.