Um passeio pela tirania - Texto completo
As ruas das
cidades são páginas em branco, onde tanto se podem encontrar clichês como
poemas, ameaças e deslumbramentos, mupis ou revoluções. As ruas foram a fonte
de inspiração de quase todos os escritores, pintores, fotógrafos e artistas a
partir do século XIX, que nelas se passeavam em busca do banal e do
surpreendente, que pudesse alimentar as suas obras. E não há muitas coisas mais
inspiradoras do que abrandar o passo da caminhada, vaguear os olhos e descobrir
os segredos das vielas e atalhos que nos pareciam mais familiares, ao ponto da
invisibilidade.
Foi numa dessas
caminhadas que, numa praça principal, me deparei com uma dessas banalidades: uma
manifestação; daquelas em que as pessoas levantam cartazes e vozes ao céu como
se esperassem ser escutadas de muito longe. E passando os olhos pelos cartazes,
na tentativa de adivinhar o que se protestava, apercebi-me de que eram
mensagens em polaco, inglês e português, empunhadas maioritariamente por
figuras femininas de todas as idades. Uma delas chamou-me a atenção. Era uma
mulher já entrada nos anos, de pele enrugada e costas dobradas pelo tempo, mas
com os olhos e as mãos ainda firmes para segurar um cartaz em português contra
a penalização do aborto. Estranhei a princípio, depois percebi que se tratava
de uma manifestação contra o governo católico-nacionalista da Polónia, que
pretende impedir o aborto em casos de deformação do feto.
A legislação
polaca sobre a interrupção voluntária da gravidez era já das mais blindadas da
Europa, só permitindo o aborto em caso de violação, perigo de morte para a mãe
ou malformações graves do feto. Agora nem isso. O homem forte do governo
polaco, Jarosław Kaczyński, explicou que era fundamental que estes fetos
viessem ao mundo, mesmo que na maioria dos casos fosse só para serem batizados
e depois enterrados, transformando deste modo mulheres grávidas em caixões
vivos a deambular pelas cidades.
Dei por mim a
pensar que enquanto Baudelaire, Dickens, Degas e Monet descobriam a inspiração
das ruas, os governos nacionalistas e ditatoriais do seu tempo descobriam a
utilidade das mulheres como fonte de soldados e proletários para operar canhões
e linhas de montagem, e por isso foram os primeiros a proibir o aborto. O que pode
explicar que um partido português de direita recentemente pudesse discutir a
possibilidade de mutilar mulheres que abortassem: haverá crime maior de
lesa-pátria do que subtrair a um estado totalitário a sua carne para canhão?
Afastei-me
devagar, em busca de outras surpresas da cidade. Enquanto caminhava olhei uma
última vez a multidão que começava a dispersar e a mulher idosa que continuava
a segurar no seu cartaz. Era um cartaz empunhado contra uma medida política num
país distante, que provavelmente aquela mulher nunca terá visitado e cuja
língua deve desconhecer. Lembrei-me de que o aborto só foi despenalizado em
Portugal há pouco mais de dez anos, e que antes disso, chegaram a morrer quase
duas mil portuguesas por ano, vítimas de abortos clandestinos.
Voltei de novo a
cabeça para trás, tentei estimar quantos anos teria a mulher de vida e, em
silêncio, adivinhei as razões íntimas que a teriam levado a esta praça, no meio
de uma pandemia que lhe poderia ser fatal, para fazer um gesto, por mais
pequeno e inútil que parecesse, por outras mulheres que viviam num país
distante, que aquela mulher que protestava talvez nunca venha a ver na sua vida. (publicado originalmente aqui.)