Crónicas em revista (1)



(Vou começar a publicar aqui algumas crónicas antigas, que ainda carrego comigo. A primeira foi uma crónica para a página do Bairro dos Livros, do Jornal de Notícias, publicada em Fevereiro de 2013)

Animais ferozes


Não sou Matusalém para me lembrar da primeira escrita, feita de cortes na pedra que a tornavam imortal. Não sou do tempo das tábuas de cera e dos estiletes que as sulcavam, do tempo em que escrever era abrir feridas na realidade.
Também não sou do tempo em que se escrevia na pele dos homens, com tatuagens e cicatrizes, para dar nomes e vidas e identidade, nem que se escrevia nas peles de animais, onde os monges copistas gastavam os seus olhos, mãos e costas, e deixavam nas margens mensagens sobre o frio e o cansaço e a tristeza do seu trabalho.
Mas sou do tempo em que escrita manchava. Em que o meu pai tirava uma máquina de escrever azul clara de cima de uma estante e afundava, uma a uma, as teclas da máquina para martelar a tinta no papel e fazer despontar as letras indecisas. Em que ficava com as mãos e a roupa brancas do pó de giz, em que a escrita era a dança da caneta no papel, a caneta que se esmagava debaixo dos livros da mochila e gotejava azul, verde e vermelha no tecido. Do tempo do lápis, que se desvanecia com tempo e a borracha, mas deixava sempre um rasto de fumo no papel.
E sou de hoje, do tempo do computador, em que as palavras perderam o cheiro e a textura e estão lá longe, escondidas atrás de um ecrã, a piscar, temerosas, sabendo como a sua vida é frágil e a ondulação de um dedo as varre do mundo. Já não são cordas que nos unem a outro lugar irreal que tentamos puxar para nós, mas são elas próprias irreais. Escrevo-as e apago-as e publico-as sem esforço, como corpos prostituídos que andam pela rua sem maquilhagem nem elegância. E talvez por isso ainda volto aos cadernos, aos livros em papel, aos livros antigos, e sinto a falta das máquinas de escrever onde nunca escrevi, saudoso do tempo em que as palavras eram animais ferozes.