Crónicas em revista (2)
(Continuo a publicar aqui algumas crónicas antigas, que ainda
carrego comigo. A segunda foi uma crónica para o jornal Público, publicado em Dezembro de 2012)
A peça que não encaixava
Anna Anthropy, também conhecida por Auntie Pixelante e também conhecida por Dessgeega, é designer de videojogos. Foi homem, hoje é mulher, mantém uma relação estável com outra mulher. Contou a sua história em Dis4ia – uma experiência interativa que não trata de armas, nem de pássaros, nem de corridas, mas de algo mais doloroso, íntimo e urgente: o processo de mudança de sexo de Anthropy.
Através de imagens, sons, palavras e os gestos do próprio jogador, Anthropy tentar contar a sua experiência, que sabe rara e incompreendida, usando como metáfora o mais clássico dos videojogos: o Tetris.
No jogo de 1984, do engenheiro informático russo Alexei Pajitnov, as peças a encaixarem umas nas outras para desaparecerem eram uma metáfora triste e sombria da vida na União Soviética, mas Anthropy pegou nessa metáfora para se traduzir a si própria na peça que não encaixa em lado nenhum: um homem que não se sente homem e deseja ser mulher para amar outra mulher.
Os jornais, os livros e a internet contam milhares de histórias assim, únicas e pessoais, mas Anthropy permite-nos tocar, através do interface virtual, a sua dor e frustração, senti-la através das palavras, das imagens, dos sons e dos gestos que fazemos no jogo.
Se a face mais visível dos videojogos é o escapismo adolescente ou o passatempo adulto, há um pequeno nicho de videojogos que procura contar histórias íntimas, pessoais, que abram olhares singulares sobre o mundo. É o que acontece com Dis4ria, com Aether, onde o deslumbramento e a melancolia da infância são uma viagem estonteante entre nuvens e planetas, ou Passage, onde a vida é uma caminhada cada vez mais difícil e estreita numa paisagem familiar. Juntando a intimidade da tecnologia e os gestos do teatro, hoje as histórias de outras pessoas já não são algo que apenas recebemos com os nossos olhos e ouvidos, mas que podemos partilhar com o nosso próprio corpo.