Ibéria Sector 5 - Da memória e da invenção

 


Ibéria Sector 5 é um projeto performativo de Visões Úteis, em coprodução com o Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica, dirigido por Carlota Castro, com interpretação de Inês Dias, João Delgado Lourenço e Maria Manuel Almeida, que procura explorar a possibilidade do reenactment no âmbito das artes performativas.
Reenactment é a recuperação de uma dada performance por via da repetição e do arquivo, e a sinopse do espectáculo sugere que esta é uma possível forma de preservar as artes performativas da sua efemeridade, legitimando-as, do ponto de vista institucional, ao nível da literatura e de outras artes de que fica algum registo.
Tal objetivo político daria azo a uma longuíssima discussão - a questão da legitimação vs. subversão, o papel social da arte, a perenidade da arte e do artista, as condições de criação e as especificidades das várias práticas artísticas, etc. -, embora seja compreensível que uma geração de artes performativas, que emergiu nos anos 80 e 90, revoltando-se contra a cultura institucional, agora se preocupe com o seu legado e o seu reconhecimento.
Mais interessante, todavia, é abordar a concretização prática desse objetivo. Para este reenactment foi escolhida uma peça, Ibéria Sector 5, encenada originalmente por O. Barata para a companhia Cooperativa Bonifrates, apresentada no FITEI em 1981. O enredo apresenta cientistas que investigam um conjunto de seres humanos que se dedicam a práticas culturais bizarras, evidentemente caricaturas dos comportamentos dos povos ibéricos. Esta é uma estrutura dramatúrgica que remete claramente para o sentimento de inferioridade e atraso cultural e económico que ainda dominava os povos ibéricos nos anos 80 e 90 em relação ao resto da Europa, em parte fruto de duas longuíssimas ditaduras de extrema-direita. Tal sentimento era convertido no orgulho feroz da própria diferença, que é típico de todas as comunidades que se sentem marginalizadas. Podemos reconhecer essa estrutura de sentimento em sketches humorísticos dos anos 90, como no Herman Enciclopédia, de Herman José.
Mas, mantendo a estrutura de base, Carlota Castro fez uma atualização do texto, substituindo as situações originais por situações mais identificáveis na atualidade, relacionadas com turismo, feminismo, novos modelos familiares, etc. E mudou o final, que terminava com uma revolta violenta das cobaias ibéricas, vingança simbólica contra os superiores hierárquicos, optando por um encontro à mesa, que reflete uma mentalidade contemporânea de portugueses e espanhóis, apesar das diferenças económicas, se sentirem já perfeitamente integrados e a par do resto da Europa.
Estas transformações dramatúrgicas mudam radicalmente o sentido do texto, que passa a evocar ideias contemporâneas como o diálogo como solução dos problemas, e a afirmação das diferenças culturais como sendo mais importantes que as económicas.
Esta atualização do texto, torna-se, na verdade, na essência do próprio espectáculo, com os novos textos e soluções cénicas a mostrarem maior urgência e gerarem evidente compreensão e adesão por parte do público, ao contrário dos elementos que sobram da performance antiga. Esta evidência ganha corpo nos próprios atores, em que os intérpretes jovens e as suas personagens, pela intensidade, acabam por quase abafar a personagem do cientista, interpretada por uma atriz que tinha participado do espectáculo original. Ou seja, o presente sobrepõe-se ao passado, a nova criação derrota o reenactment.
Esta ideia de reenactment regressa na segunda parte do projeto, uma conferência performativa com a encenadora Carlota Castro e a investigadora Paula Caspão, que procura explorar a relação do projeto com os estudos de reenactment. Curiosamente, a performatividade deste momento recorre a dois dispositivos que - acidentalmente ou não - remetem para mecanismos típicos de jogos de computador dos anos 80: um tempo limitado para cumprir os objetivos, e a escolha de palavras chave para construir um simulacro de diálogo entre intervenientes e público. Tal como nos jogos de computador, há o risco de estas limitações não permitirem uma conclusão e um sentido evidente para a experiência, mas em contraponto, conferem-lhe uma feição de verdadeiro encontro e dos riscos que qualquer verdadeiro encontro implica - confusão, elipses, incerteza, sobreposição de vozes, inquietação, ansiedade - enfim, algo que se assemelha à vida que a performance insiste em reivindicar para si, desligada de qualquer ideia de passado ou previsibilidade do futuro.

Obviamente, um conceito como o reenactment não pode ser julgado apenas com um único exemplo. Todavia, noutro exemplo, em 2018, quando o encenador Gwenaël Morin reproduziu ao vivo, sem qualquer atualização, a performance Paradise Now, dos Living Theatre, verificou-se também os limites da obediência fiel a um original: Aquilo que em 1968 havia sido revolucionário e marcante, em 2018, foi acolhido friamente por público e crítica como sendo um objeto de museu algo embaraçoso pelo seu anacronismo e de falta de vínculo com o presente. A força deste Ibéria Sector 5 está em não repetir o mesmo erro. Mas, não é possível deixar de notar que a opção que tomou tem na verdade é uma longa tradição do teatro, que é a revisão e atualização cénica e textual e obras performativas canónicas do passado, como já faziam Ésquilo, Shakespeare, Molière.

O presente tem uma enorme obsessão com o passado e com a sua manutenção. Talvez tal se deva a falta de horizontes para o futuro, talvez ao desejo de corrigir um passado que é visto como um fardo, como aquilo que, contra os nossos desejos, nos dá identidade. Mas, na verdade, pergunto-me se essa identidade está realmente assim tão ancorada no passado e na memória. Em Tertúlia de Mentirosos, o dramaturgo de Peter Brook, Jean-Claude Carrière, conta a história de um grupo judaico que procura recuperar um ritual religioso que só é feito de 30 em 30 anos. O grupo faz um ritual, mas na verdade, os mais velhos do grupo já não se lembram muito bem do ritual, e os novos nunca participaram dele, de modo que lá fazem qualquer coisa que se parece vagamente com um ritual, e se dão todos por felizes, embora ninguém tenha a certeza se realmente corresponde ao ritual original. Ou seja, a força do ritual está em fazê-lo e em sentir que ele acontece, não no seu conteúdo ou sequer na sua forma, da mesma forma que a força deste Ibéria Sector 5 é aquilo que traz de frescura, de vida e de novidade, e não daquilo que procura relembrar. Porque, para todos os efeitos, o Ibéria Sector 5 que temos agora, não é a versão de 1981, é a versão de 2023, que talvez abra caminho a ser lembrado e esquecido pelo Ibéria Sector 5 de 2065.