Mariana Desditada

 


Tantas coisas caretas e fora de moda neste espectáculo da Anthropos A.C., dirigido por João Condeça: cartas de amor de uma freira, literatura do século XVIII, e a crença profunda que faz sentido levar hoje à cena as Cartas Portuguesas de Soror Mariana Alcoforado.

Desde que Fernando Pessoa e o modernismo em geral taxaram as cartas de amor como "ridículas" e o pós-modernismo decidiu que tudo era ilusão e ironia, que é raro encontrar um espectáculo assim - servido por uma intérprete carismática e segura, Patrícia Fonseca, um acompanhamento musical disponível e presente, e uma cena ágil, que salta entre texto e performance, que acredita em si própria ao mesmo tempo que não nos tenta impingir a última salvação do mundo, que respeita a literatura de Mariana Alcoforado, ao mesmo tempo que lhe dá uma feição moderna, jovem, reconhecível.

Numa altura em que se sentenciou que literatura e teatro são incompatíveis e o seu encontro um embaraço, eis a quadratura do círculo: um espectáculo que é ao mesmo tempo literário e performativo, que vem do passado e é de hoje, que é absolutamente sincero sem se envergonhar da sua  natureza de espectáculo.

David Foster Wallace, em A Piada Infinita, reconhece que apesar de todo o prazer da ironia e do espírito, nada consegue realmente salvar as pessoas senão a ingenuidade - essa palavra inquietante que sugere que é possível ser-se, em simultâneo, livre, autêntico, inteligente e novo. Ou, como os nossos tempos desesperados querem acreditar: "ridículo".

Quem dera que mais gente descobrisse este espetáculo, e redescobrisse que não há nada de ridículo na ingenuidade e na esperança desesperada das cartas de amor.