Gil Vicente
(Este blogue está a ter uma ressurreição surpreendentemente quinhentista.)
Saiu mais uma edição do Auto da Barca do Inferno. Outra, no oceano de edições desta peça, enquanto as outras quase meia centena de textos de Gil Vicente continuam quase ignorados. Quando não se sabe o que se editar, edita-se Os Maias, Os Lusíadas e o Auto da Barca do Inferno e arruma-se logo com o património literário português.
Esta edição da obra mais popular de Gil Vicente tem, porém, a particularidade de inclui um prefácio de Beatriz Batarda onde esta atriz professa, no mínimo, o seu desinteresse para com este autor, descrevendo a sua obra como “boçal, primária, e limitada”, o seu vocabulário como “brejeiro”, e as suas histórias como “popularuchas”.
Os qualificativos geraram muita controvérsia e discussão, mas, mais do que isso, interessou-me que Beatriz Batarda escudasse a sua opinião em “mais de metade de uma vida dedicada ao teatro”. Ou seja, que o seu trabalho em palco lhe dá a autoridade de avaliar a obra de um autor, mesmo que esse autor tenha escrito para uma prática teatral totalmente diferente da sua, dentro de uma estética, de uma ética, de uma cultura muito diferentes daquelas em que a prefaciadora trabalhou "metade de uma vida".
É isto o equivalente a um corredor de automóveis ir experimentar correr num cavalo e acabar por concluir que os cavalos são lentos, desconfortáveis e cheiram mal, sem sequer lhe ocorrer que um cavaleiro medieval provavelmente acharia um automóvel confuso, incontrolável, claustrofóbico e com um cheiro horrível a gasolina
Ou como eu pronunciar-me sobre as receitas de arenque do norte da Europa, depois de, vá lá, dois terços de uma vida enquanto comedor de sardinhas.
Quero dizer que a opinião de Beatriz Batarda não desqualifica Gil Vicente enquanto autor medieval, nem desqualifica a própria Beatriz Batarda enquanto atriz contemporânea, mas claramente desqualifica a prática pessoal enquanto fonte de avaliação de outras práticas artísticas, quando estas se sustentam em estéticas radicalmente diferentes.
E confirma também a minha suspeita de que apesar da idolatria que agora se confere ao trabalho prático, há algo no salto imaginativo do pensamento teórico a que a rotina do corpo dificilmente consegue chegar.
Saiu mais uma edição do Auto da Barca do Inferno. Outra, no oceano de edições desta peça, enquanto as outras quase meia centena de textos de Gil Vicente continuam quase ignorados. Quando não se sabe o que se editar, edita-se Os Maias, Os Lusíadas e o Auto da Barca do Inferno e arruma-se logo com o património literário português.
Esta edição da obra mais popular de Gil Vicente tem, porém, a particularidade de inclui um prefácio de Beatriz Batarda onde esta atriz professa, no mínimo, o seu desinteresse para com este autor, descrevendo a sua obra como “boçal, primária, e limitada”, o seu vocabulário como “brejeiro”, e as suas histórias como “popularuchas”.
Os qualificativos geraram muita controvérsia e discussão, mas, mais do que isso, interessou-me que Beatriz Batarda escudasse a sua opinião em “mais de metade de uma vida dedicada ao teatro”. Ou seja, que o seu trabalho em palco lhe dá a autoridade de avaliar a obra de um autor, mesmo que esse autor tenha escrito para uma prática teatral totalmente diferente da sua, dentro de uma estética, de uma ética, de uma cultura muito diferentes daquelas em que a prefaciadora trabalhou "metade de uma vida".
É isto o equivalente a um corredor de automóveis ir experimentar correr num cavalo e acabar por concluir que os cavalos são lentos, desconfortáveis e cheiram mal, sem sequer lhe ocorrer que um cavaleiro medieval provavelmente acharia um automóvel confuso, incontrolável, claustrofóbico e com um cheiro horrível a gasolina
Ou como eu pronunciar-me sobre as receitas de arenque do norte da Europa, depois de, vá lá, dois terços de uma vida enquanto comedor de sardinhas.
Quero dizer que a opinião de Beatriz Batarda não desqualifica Gil Vicente enquanto autor medieval, nem desqualifica a própria Beatriz Batarda enquanto atriz contemporânea, mas claramente desqualifica a prática pessoal enquanto fonte de avaliação de outras práticas artísticas, quando estas se sustentam em estéticas radicalmente diferentes.
E confirma também a minha suspeita de que apesar da idolatria que agora se confere ao trabalho prático, há algo no salto imaginativo do pensamento teórico a que a rotina do corpo dificilmente consegue chegar.