Modos de habitar num depósito a prazo.



Sou naturalmente desconfiado em relação a considerações sobre o que é ser especificamente português. Também o sou em relação a remédios miraculosos, paixões súbitas e ferramentas para todo o serviço. Por tudo isto, sou também cético quanto à mina de ouro que parece ter sido descoberto no centro das principais cidades portuguesas.
Primeiro de tudo porque não é um fenómeno exclusivamente português, mas algo que está a acontecer em quase todas as cidades do Ocidente. Não se deve apenas ao turismoou aos Vistos Gold ou ao terrorismo internacional que tornou Portugal no último paraíso da Terra onde toda a gente se procura refugiar.
As suas causas são muitas: desde a inflação dos combustíveis, a consciência ecológica, a redução do número de filhos e as habitações monofamiliares, que favorecem um estilo de vida autónomo, mas de encontros múltiplos com amigos e desconhecidos. Mas a mais forte causa é a desconfiança em relação aos bancos, e as baixas taxas de juro que tornou os imóveis no investimento mais apetecível e de aparente futuro. E os imóveis no centro das cidades da moda, fáceis de alugar a turistas, a estudantes Erasmus, à nova classe dos hipsters nómadas, que fazem teletrabalho de países exóticos e baratos para enganar a falta de poder de compra, a casais sem filhos ou amigos que vivem juntos tornou-se o melhor dos investimentos.
Isto originou uma febre ao ouro dos imóveis nas cidades cool, em que o dinheiro se possa tornar paredes, de onde possa jogar mais dinheiro.
E o que são as cidades cool? As cidades onde a cerveja é barata, a comida internacional, os bares inclusivos e cosmopolitas, os eventos anglófonos e o wifi abundante e barato. As cidades onde nos conseguimos sentir mais vivos porque encontramos muita gente parecida em todo o lado.

É mau? Não necessariamente. Mas também não posso esquecer que é um fenómeno que esconde interesses económicos e uma crise latente. E por isso, sempre que vou a uma esplanada, percorro uma rua turística ou vou a um evento, não deixo de me interrogar: será que estou a encher o depósito a prazo de alguém?