Uma história de amor
A internet, antes de haver internet, estava nas livrarias e nos quiosques. Era aí que nos podíamos perder em informação, sabedoria e bisbilhotices sem fim, e ficarmos pasmados diante da multiplicidade do mundo.
Em ambas passei muitas horas, a percorrer livrarias e quiosques, a tentar ler o máximo possível dos livros e revistas que não podia comprar, e a comprar o máximo de livros e revistas que o dinheiro me deixava. Daquelas onde passei mais tempo terão sido a desaparecida livraria Leitura, onde por vezes pareciam acotovelar-se todos os livros já publicados, e a Poetria, nas Galerias Lumière, mesmo em frente ao Teatro Carlos Alberto.
As Galerias Lumière são uma daquelas galerias comerciais dos anos 70-80, feitas de lojas acanhadas de ambos os lados de uma galeria escura e claustrofóbica, onde os nossos pais se juntavam para ver montras, beber galões, comer croissants e abrigarem-se da chuva e do frio, antes de abrirem os shopping centers dourados dos anos 90, onde já se podia ver montras, beber cappuccinos e comer cupcakes com uma vaga sensação de luxo.
A Lumière todavia, tem uma diferença. A meio a galeria incha até se tornar numa abóbada luminosa e arejada, com plantas e luz natural, que nos confunde os sentidos. É como atravessar uma gruta para descobrir o sol subterrâneo de um mundo interior onde apetece ficar em contemplação. E nos últimos anos, mesas e cadeiras estrategicamente colocadas favoreceram que esta praça luminosa e abrigada se tenha tornado espaço de leitura, trabalho e encontro de muitos. Mas, como as galerias de antes, continua a ser uma incubadora de comércios de paixão individual. De pequenos empreendedores que aí abrem lojas para partilhar aquilo que de que gostam: revistas internacionais, antiguidades, especialidades gastronómicas ou até conjuntos de chapéus e jogos de xadrez (na mesma loja). E, claro, a Livraria Poetria.
A Poetria é uma das maiores histórias de amor que já testemunhei. Recordo-me da sua inauguração em 2003, do entusiasmo das duas sócias ao apostarem em duas literaturas tão minoritárias como o teatro e a poesia. Lembro-me das primeiras dificuldades, do seu espaço ter de encolher. Lembro-me de a Dina Ferreira ficar sozinha a defender a livraria.
E como a defendeu! A maioria teria desistido passado dois anos, ou nem isso, mas a Dina lutou sempre. Por amor aos seus livros, à sua livraria. Sempre com novas ideias, novas iniciativas, eventos, cumplicidades que a ajudavam a manter acesa esse fogo de paixão - aquilo que nos causa sofrimento, mas sem o qual sabemos que a vida não merece ser vivida. E devem ter sido tantos os momentos de angústia que a Dina passou para manter a sua livraria - aquele espaço estreito e acolhedor onde os livros se aninhavam - não para serem mostrados como presuntos, como se faz nas cadeias de livrarias, mas aconchegando-se pudicamente nas estantes, para encontrarem conforto nos números e nos desafiarem a descobri-los. Entrar na Poetria é como entrar na biblioteca - que digo? - na sala do tesouro de alguém. É tropeçar em livros desarrumados, inesperados, inquietantes, apaixonantes, fora do lugar, como é suposto acontecer em qualquer livraria que é viva e habitada.
Há dois anos, a Dina já estava demasiado cansada para continuar a sua luta. Mas não era capaz de deixar morrer a sua paixão. E, como acontece em todas as histórias de amor genuíno, encontrou o Nuno Queirós Pereira e o Francisco Garcia Reis, que a quem confiou o seu amor, a sua livraria, o seu tesouro. E estes aceitaram o desafio, tornaram-se os novos guardiões dessa paixão, encarregues de continuar a reinventá-la e mantê-la viva.
Agora, parece que a Lumière e a Poetria estão em perigo. O nosso tempo é de contas e não de amores, e já se sabe que a Baixa do Porto deixou de ser um lugar de vida e de história para se tornar numa caixa registadora, numa conta de investimento de alta rentabilidade e curto prazo, num sítio onde os negócios de paixão são substituídos por franchisings e sucedâneos de franchisings. Pela versão comercial das fábricas, em que pessoais iguais vendem coisas iguais.
Talvez ainda se consiga salvar as Galerias de continuarem a ser o sítio onde as pessoas podem inventar lojas em que acreditam, negócios que os apaixonam. Talvez a Poetria possa continuar perto do teatro Carlos Alberto, a dialogar risonhamente com ele e com os seus admiradores e apaixonados. De certeza que assinar esta petição é um passo para conseguir isso