As estátuas tristes que precisam do nosso amor
(Estátua a Baco, no Jardim Teófilo Braga, Porto)
Estou em crer que a maior parte das estátuas em Portugal são dedicadas aos bombeiros, aos emigrantes e aos mortos da primeira Guerra Mundial. Por outras palavras, a sociedade portuguesa tem tido o gesto bonito de homenagear algumas das pessoas a quem deu mais chatices na vida.
Suponho que a quarta estátua mais recorrente em Portugal seja dedicada ao quem-é-este, uma figura que ninguém sabe muito bem quem é a não ser que se dê ao trabalho de ler a legenda da mesma estátua e tenha a sorte de que essa legenda exista e dê alguma ideia de quem era a figura sem ser necessário ir procurar ao Google. Para mim, o paradigma da estátua do quem-é-este é a estátua da Fonte Luminosa, em Leiria, do escultor Lagoa Henriques, que durante grande parte da minha vida supus ser uma homenagem aos sobreviventes da futura guerra nuclear, mas mais tarde soube pretender retratar dois rios locais. Ao menos confirmou-se o poder expressivo do conjunto escultórico de retratar um desastre ecológico. Tal sorte já não tem a estátua do Camilo Castelo Branco diante da Cadeia da Relação do Porto, em que o escritor romântico que costumava ameaçar meter-se num convento à mínima frustração amorosa é retratado como se fosse um gigolo de cinema porno dos anos 80, ou a estátua de Nun'Álvares Pereira inaugurada no Restelo em 2016, em que aquele nobre e santo português é retratado a fazer um hara-kiri particularmente doloroso e incompetente.
As estátuas têm estado na ordem do dia, em torno da estátua do padre António Vieira em Lisboa, com tal intensidade que cheguei a julgar que tivesse sido atirada pela calçada da Glória abaixo. Mas a causa foi um grafitti um pouco mais subtil e politicamente informado do que os normais “amo-te muito teresa”, “morte à bófia” ou “morte aos ladrões”. Embora o vandalismo político mais subtil e contundente que já vi foi quando alguém substituiu a espada da estátua aos heróis da Guerra Peninsular, no Campo Grande, em Lisboa, por uma vassoura.
Eu gosto de estátuas. As estátuas são arte pública: feita por um artista para convocar e interpelar as nossas convicções políticas, o nosso conhecimento histórico, os nossos ideais estéticos, a nossa capacidade de interpretação. Por mais kitsch que possam ser, mais cheias de verdete e dejetos, esquecidas por público e autoridades, por mais anacrónicos os seus valores nos surjam, são também o centro de praças e, muitas vezes é torno delas que se fazem manifestações, protestos, encontros amorosos ou turísticos. Nelas já se penduraram cartazes, faixas, bandeiras, já serviram de pódios improvisados para comícios, já se penduraram chapéus, casacos, guarda-chuvas, e junto delas muitos bêbedos e sem-abrigo ou outros já se refugiaram da chuva e do vento. São campos de batalhas de ideias, como deve ser a arte feita em público.
Mas o que gosto mesmo nas estátuas são as suas poses abandonadas e vagamente ridículas, os seus olhares vazios para o horizonte, onde parece estar angústia e tédio de vida, o peso que a sociedade lança sobre nós, de nos forçar constantemente a avaliar o sentido do que fizemos antes e o modo como seremos julgado pelo futuro depois.