Os Mutilados, de Hermann Unghar
A literatura é o conforto das palavras sólidas, que dão contornos e sons definidos à experiência vaga de viver.
O pior são livros como este "Os Mutilados", do checo Hermann Ungar, contemporâneo de Kafka, em que as palavras não trazem certezas nem aconchego, mas sublinham a angústia daquilo que não sabemos: o que move os outros, o que acontece na nossa ausência, até que ponto encaixamos numa sociedade humana que nos parece tão incompreensível.
É um livro duro, na sua violência intransigente e surda, no seu retrato de seres humanos dominados pelo visco dos corpos e a solidão das almas. E nessa intransigência está também o seu maior defeito: a vontade que dá de gritar ao autor, já morto, que a vida também tem sol, também tem momentos efémeros de alegria e cumplicidade e não é apenas uma luta selvagem pela sobrevivência do nada que é o indivíduo.
Mas o livro permanece mudo. Falei de Kafka: que nos oprime com a falta de sentido das leis, da existência. Mas Ungar oprime-nos com a falta de sentido do próprio corpo e do entendimento. O homem de Kafka não compreende porque tem de esperar à porta da Lei. O homem de Ungar não compreende sequer o sentido das palavras do guarda que está à porta, mesmo que saiba que este lhe está a desafazer aos pouco o corpo e a vida.