O Doutor Glas, de Hjalmar Söderberg



Há livros indefiníveis, difíceis de ancorar no tempo preciso em que foram escritos. O protagonista desta obra, Tycho Glas, terá vivido em Estocolmo no virar para o século XX, quando o caso Dreyfus abalava toda a Europa, mas poderia viver nos nossos dias.
O registo diarístico subtil do livro dá-lhe uma frescura que poderia ser de hoje: do tédio, da busca íntima de princesas para salvar e de dragões para matar, busca que é abafada por jantares, passeios, leitura de jornal, a rotina lenta dos dias que são tão longos e se escoam tão depressa de uma vida. O tédio ganha a consistência de sonhos e recordações que vão perdendo importância. Tal como na vida, os outros que nos rodeiam vão-se tornando figurantes dos nossos dramas pessoais - quer como alvos de desejo, de ódio inexplicável, de entretenimento fugaz.
E, no entanto, neste livro de uma modernidade espantosa, mais acessível que o Ulysses, de James Joyce, ou Em Busca do Tempo Perdido, de Proust, há uma coisa que inquieta: será que Söderberg antecipou a nossa sensibilidade, aquilo que nos perturba nas horas longas de lazer e de trabalho, ou será antes que foi ele que nos inventou, enquanto atores de dramas em que o grande conflito é mesmo este não existir?