A História incompreensível





A ficção histórica é uma armadilha sedutora. Promete ensinar-nos, mas quase sempre só nos dá fugas ilusórias para tempos supostamente mais interessantes.
Este pequeno e magnífico livro de Pascal Quignard é sobre o tempo mais interessante de todos - a queda de Roma e a ascensão do Cristianismo - tal como foi vivido por uma aristocrata romana, Apronenia, que se enfastia com o tédio dos seus dias.
E, no entanto, Apronenia está no centro do furação, na cidade de Roma, perto das controvérsias intelectuais do seu tempo, das intrigas políticas, das lutas verbais e físicas entre pagãos e cristãos. E tudo aquilo que se lhe dá registar nas suas tabuinhas de buxo é as compras que manda os escravos fazer, o tempo que faz, as saudades que tem de um antigo amante, as festas e banquetes que organiza e em que participa, como se o seu mundo não estivesse à beira da derrocada.
O livro divide-se entre uma introdução pseudo-histórica que dá o contexto da vida de Apronenia e os fragmentos das suas tabuinhas, onde se escreve com volúpia de corpos, frutos, chantagens, amores, de comportamentos que parecem tão estranhos à nossa cultura triunfante do cristianismo.
Só sorrateiramente, sob a prosa luxuriante de Quignard, nos vamos apercebendo que Apronenia não é uma mulher fútil, egocêntrica ou inconsciente, mas que, tal como nós, pouco mais vê da sua vida além do seu corpo, e lhe faltam as palavras para descrever aquilo que vive, pois nunca ninguém o viveu antes para lho poder transmitir.
Que essa é a função da história, a de nos transmitir palavras para entendermos o nosso presente, sempre à beira da mudança.