Só os impiedosos podem ser radicais

 


A Renata Portas é das mais intransigentes e coerentes criadoras de teatro portuguesas que conheço. Feito nada fácil numa área sempre sujeitas a inúmeras condicionantes e expetativas. Escolher levar à cena alguns dos Dramatículos mais experimentais e obscuros de Samuel Beckett, que eu traduzi, seria previsível. Afinal, todo o teatro da Renata pauta-se por um fascínio com a morte, a perda, a solidão perante o destino inescapável, com aquilo que sobra da existência humana quando a vontade e o sentido deixam de existir. Um teatro da cerimónia e da ausência, que recusa a ilusão e o conforto e procura o despojamento monástico e o trabalho milimétrico do ator.

Se o casamento de textos e encenadora seria previsível, o resultado é tudo menos previsível. É que nestes Dramatículos que agora estrearam, a Renata Portas deixa para trás o teatro, ao mesmo tempo que leva o seu próprio teatro até às suas últimas consequências.

Em tempos recentes, discute-se a ideia da teatralidade - a propriedade de objectos artísticos serem feitos para serem vistos e compreendidos por um público, e do artifício que isso implica numa arte contemporânea que busca sem cessar a espontaneidade e o inesperado. Estes Dramatículos recusam de forma quase absoluta essa teatralidade, ao mesmo tempo que desdenham da espontaneidade. Os textos sSão dados ao público não enquanto teatro, mas enquanto performance, instalação ou videoarte, para serem experimentados nas suas sensações e incertezas, deixando o espectador a sós com aquilo que está a viver. Desde a lentidão de "Improviso de Ohio", em que as palavras são tiros no meio do silêncio insuportável, à nudez existencial de "Passos", em que a atriz tapa o corpo vestido para esconder a alma nua, ou "Eu Não", reduzido a um clown de dor e raiva, ou "Jogo", em que as personagens de telenovela são reduzidas a robôs de repetição de textos e sentimentos vazios. Lá pelo meio, "Embalo" é talvez o momento mais teatral, em que a personagem grita "Mais" - mais sentido, mais esperança, mais humanidade, mais vida - enquanto a vemos reduzida a uma abstração em movimento.

Neste encontro radical entre Renata Portas e Samuel Beckett, os textos deste último deixam de ser textos e tornam-se no tapete sonoro do século XXI, tal como os atores deixam de ser atores para passarem a ser matéria performativa. E paradoxalmente são as cenas mais próximas das artes plásticas - as coreografias e instalações - que se tornam os elementos mais teatrais deste espectáculo, a que já não se pode propriamente chamar espectáculo, pela enigma e intensidade que o devoram.

E por fim o paradoxo mais espantoso: a Renata não só subverteu Beckett, seguindo-o fielmente, como cumpriu a promessa tão anunciada em tempos recentes de que o teatro iria passar a ser só mais um dos campos da arte contemporânea, ao mesmo tempo que não deixa de continuar a ser o teatro que a Renata Portas sempre perseguiu, e que é tão dela como os dedos são da mão e do braço.