O Dia do Santo Prepúcio


Talvez já ninguém se recorde, mas até meados do século XX, o dia 1 de Janeiro era o feriado da Circuncisão de Cristo, dia em que se celebrava o momento em que Jesus terá sido levado a um templo, ou uma gruta, ou uma cova para ser circuncidado.

Gesto ritual com tanto de étnico como de higiénico, este terá sido o primeiro derramamento de sangue de Cristo, o sangue que os cristãos acreditam que os salvará.

Segundo Santa Brígida, no seu livro “O Prepúcio do Senhor”, após o rito, Maria terá recolhido a pequena pele numa bolsa de cabedal, que guardou toda a sua vida até o dia em que o terá entregue ao discípulo amado de Jesus, João.

Com ele e os seus discípulos terá ficado a relíquia durante séculos, até uma noite do ano de 800, em que o imperador Carlos Magno, ao rezar na sua capela pessoal de Aix-la-Chapelle, abriu os olhos e viu surgir diante de si um anjo, de asas e auréola e tudo, que lhe ofertava uma pequena bolsa, dentro da qual o senhor dos francos encontrou o santo prepúcio de Cristo.

Devoto como era, Carlos correu a oferecer a relíquia ao papa Leão II que, de bom grado, a mandou guardar na Sancta Sanctorum de Roma durante séculos, onde os devotos acorriam para ver o último vestígio material de Jesus na terra. Caso não pudessem deslocar-se a Roma, poderiam também ver a santa relíquia em Antuérpia, Besançon, Compostela e outros 8 lugares, pois Cristo parece ter sido abençoado com um abundante prepúcio. Este não, aliás, isento de controvérsias, como é o caso da “Discussão sobre o Prepúcio de Nosso Senhor Jesus Cristo”, de Leão Alácio, onde este associa esta parte de Jesus aos anéis de Saturno.

Mas, em 1527, outro Carlos, V, de Espanha, invadiu Roma. No meio do saque generalizado, um soldado alemão tomou a santa relíquia e com ela fugiu, acabando por a esconder na cidade de Calcata onde, reencontrado, o prepúcio relançou o entusiasmo em torno da relíquia, que passou a ser venerada a 1 de Janeiro e a ela foram atribuídos milagres como cegos que veem, nevoeiros aromáticos, tempestades fora do tempo e o nascimento de Henrique VI de Inglaterra, etc.

O próprio Voltaire reconheceu a importância do prepúcio, escrevendo no "Tratado sobre a Tolerância": “Não saltará aos olhos que ainda seria mais razoável adorar o santo umbigo, o santo prepúcio, ou o leite e as vestes da virgem Maria, do que execrar e perseguir o nosso irmão?”

O tempo e a Revolução Francesa acabaram por tirar o fulgor ao Santo Prepúcio e, em 1960, discretamente, a Igreja Católica mudou o dia 1 de Janeiro de Dia da Circuncisão de Cristo para a Festa do Santíssimo Nome de Jesus, trocando assim o corpo pela palavra. E, numa noite de 1983, o pároco de Calcata, o padre Dario Magnoni, comunicou à sua cidade que desconhecidos lhe tinham invadido a casa e roubado o santo prepúcio, que nunca mais voltou a ser visto em público.


Era muito fácil fazer piadas com esta história, mas na verdade fascina-me que durante séculos milhares de pessoas tenham feito peregrinações, ajoelhado, cheirado, beijado, provado até, um pedaço de pele seca como sendo a mais importante prova da sua religião. Facilmente se chamaria a essas pessoas de incultas ou ignorantes, mas eu resisto a entrar nessa facilidade. Acredito antes que elas fizeram o melhor que puderam e souberam dentro das circunstâncias em que viveram. E por isso suspeito que o que essas pessoas tinham era uma crença profunda de que este objeto aparentemente inútil, ridículo, mirrado, talvez fosse o mais verdadeira símbolo das suas vidas, a que elas próprias davam sentido com a sua fé e a sua imaginação, encontrando assim um novo sentido para as suas escolhas, os seus atos e as suas vidas.


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