Crónicas em revista (3)
(Continuo a publicar aqui algumas crónicas antigas, que ainda carrego comigo. A terceira foi uma crónica para a página do Bairro dos Livros, do Jornal de Notícias, publicada em Março de 2013)
Eu, ladrão de livros
Já fui ladrão de livros. Não ladrão de sair a correr porta fora, de arrancar capas ou passar os volumes atrás das antenas – os dispositivos à porta das livrarias que desconfiam de nós ainda antes de entrarmos.
Fui ladrão em novo, quando só havia três tipos de livrarias: livrarias papelarias, que cheiravam a plástico e fita-cola, onde professores e alunos se acotovelavam em setembro em busca de manuais, pastas, cadernos e canetas; livrarias quiosques, onde os livros mansos casavam com jornais, revistas, embrulhos e laçarotes. E, claro, livrarias livrarias.
Eram as mais raras, habitadas sempre por homens de meia idade, sempre carecas, sempre de óculos e bigode, sempre a mordiscar a ponta do indicador ao folhear livros ou registos, e que levantavam sempre o olhar suspeitoso para cada cliente, como se não acreditassem haver alguém no mundo digno dos seus tesouros.
Lá dentro eram estantes atrás de estantes, prateleiras sobre prateleiras, livros que espreitavam pelas lombadas, sem o atrevimento dos livros que hoje se escancaram para nós. Era atrás dessas estantes que eu me escondia – às vezes sentado no chão, às vezes a ondular sobre um pé e o outro – e tentava roubar o mais depressa que podia. Não o livro, mas o que estava dentro dele: palavras, ideias, histórias.
Fui apanhado muitas vezes, corrido algumas, tolerado outras, ameaçado sempre com um rosnado: “Se quer ler o livro, compre-o!”.
Hoje ainda me doem os calcanhares desses roubos imóveis, em que o corpo não mexia, mas os olhos e os dedos passavam as páginas a correr, a tentar sorver de um trago todas as histórias e pensamentos do mundo. Mas já pouco o faço, e tenho pena, pois os livros são a única arca da imaginação e saber humanos que temos a obrigação de roubar.